sexta-feira, 25 de abril de 2025 – 07h57

A vida a dois

Cinco minutos, e as minhas indagações estão escritas num almanaque de insetos
Foto: ArteNC/Freepik

Tudo se passou numa manhã de julho. Estava eu sentado à mesa, olhando a pai­sagem da janela, bebendo um copo d’água despreocupadamente, quando vi, de repente, pequenas formigas quase brancas. Miúdas mesmo. Menores que as pretinhas de jar­dim. Serelepes, com as suas patinhas peludas rondando atre­vidamente o copo. Lembrei-me de que já as tinha visto em outros lugares da casa, no chão do quarto, uma vez e, na cozinha, outra.

Aconteceu que, olhando atentamente o copo, vi, na superfície aquosa, uma formi­guinha solitária. Meu primeiro impulso foi o de expulsar a intrusa do meu copo. Mas detive-me ao observar um detalhe da cena: a formiga andava sobre a água. Andava com certa apreensão, mas andava, porque se recusava a nadar. Queria andar com desenvoltura.

Primeiramente, ela veio do centro até a lateral de vidro. Arriscou erguer o passo, encostou a pata em terra firme e tentou subir. Não conseguiu. Rodou em volta indo no­vamente ao centro, retornou e, decidida, dirigiu-se obstinadamente ao alvo. Encostou-se no vidro, levantou a pata, impulsionou o corpo e conseguiu se erguer. Estava fora de perigo. Voltou-se, olhou para baixo e deu as cos­tas, subindo até a borda. Foi embora convencida de que ali só havia água para afogá-la num descuido e vidro para subir e descer repetidamente.

Fiquei parado tentando entender como fazia ela, excelência minúscula, para andar sobre as águas. Como podia superar o peso do corpo, tornando-o suficientemente leve para não se afogar? Era possível que fosse assim: tão simples como nadar em águas, tão fácil como respirar o ar? Apoiado no fato de a formiga crer sem saber e fazer sem querer? Como uma vida simples, natural de formiga? Como po­de a formiga, sendo quem é, superar a mim, sendo quem sou?

Não sei quanto tempo durou aquela cena. Talvez tudo tenha se passado em cinco minu­tos. Cinco minutos é tempo suficiente para uma formiga ensinar a um homem sentado. Cinco minutos, e as minhas indagações estão escritas num almanaque de insetos.

Olhei para o copo e me recusei a beber aquela água de patas alheias. Levantei-me convencido de que outros fariam melhor uso do líquido visitado.

Respostas de 2

  1. A formiga nos fazendo refletir acerca de nós, tão medrosos, sempre dando passos para trás, ao invés de seguir em frente. Mesmo pequena, a formiga não teve medo de afogar-se, superando o próprio peso do corpo. Talvez ela tenha sentido medo, mas mesmo assim, eu queria ser como essa formiga…

  2. Texto super reflexivo. E olhando um micro universo, onde a formiga se comparada a nós, ainda assim, tem mais coragem, às vezes, deixando o medo e seguindo seu próprio instinto. Como diz o texto, cinco minutos foram o suficiente para uma formiga nos ensinar a superar alguns obstáculos, e superar a nós mesmos.

  3. Muito legal… mas a vida é assim, a gente vai aprendendo com as experiências e às vezes a gente nem sabe se vai sair vivo da experiência, já a formiga 🐜 não sabe de nada e se joga!

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