José Arnaud Borges da Silva firmou-se como profissional nos palcos da vida, literalmente. Da cenografia, iluminação, marcação de palco a apresentação e composição de músicas, gravadas e interpretadas por outros artistas, segue o destino, conforme as marés, prestando seus dons e, ao mesmo tempo, elevando-os, em si, à arte extraída de suas experiências existenciais.
Em conversa com o Notícias do Centro, Arnaud conta um pouco de sua vida, dos mestres, dos lugares, dos dons, das transformações e gratidões, e por onde passou, desde a infância, até o show “Sete Destinos”, seu primeiro Extended Play (EP), regado pela influência dos terreiros das culturas populares e de sua fé nos Orixás. O espetáculo musical acontece nesta quinta-feira (14), às 19h30, dentro do projeto “Quinta no Arena”, no Teatro de Arena Sérgio Cardoso, em Maceió.
Sou filho de Viçosa
“Sou Arnaud Borges, sou “MaJunVi”. Nasci em Maceió, fui morar em Junqueiro e me criei em Viçosa, cidade da Zona da Mata de Alagoas, terra de tanta riqueza cultural, tanto quanto Alagoas, tanto quanto Maceió, a capital.”
“Em Junqueiro, eu só passei um ano, fomos para Viçosa, onde vivi toda a minha juventude até meus 35 anos, das lembranças de mestre Sebastião do Guerreiro, mestre Bio, mestre Ozório, mestre Expedito, com quem convivi, nas quermesses, na festa do Padroeiro, São Jesus do Bonfim, em janeiro.”
“Trago, em minha memória afetiva, muita manifestação cultural. Essa gente foi minha base. Sabalangá, um povoado de quilombolas de Viçosa, lá convivi com as crianças. Minha mãe era diretora da Escola Coronel José Aprígio Vilela, fui criado nesse povoado, saía da minha escola, que era no centro da cidade, e ia para lá, a dois quilômetros, mais ou menos, de distância.”
“Esse convívio, infantojuvenil, me fez perceber o trajeto dos tambores dos quilombos, e tambores que eu julgava… Interessante, fui catequizado na igreja católica, foi minha formação, porém, nessas relações, frequentei muito o terreiro de mãe Nena.”
“Ainda não imaginava a importância daquele soar, daquele tambor, daquela fortaleza da natureza, para o encantamento de tudo que hoje busco entender, a respeito dos orixás, deste axé que me faz hoje, de repente, construir um show chamado ‘Sete Destinos’, cantando e contando meu trajeto, embarcado pelo rio Paraíba, pelas águas doces de Oxum, e desaguar no mar de Iemanjá, aqui na capital, Maceió.”
“Fui crescendo nesse meio das serestas, da vida. Minha mãe, dona Maria Luci Borges da Silva, cantava nas serestas, era professora, mas nos finais de semana era seresteira. Nessa vivência boa, de escutar os mais velhos, das prosas no meio dos mais velhos, toda conversa era poética.”
“Sentar ali, na praça do cinema, praça Apolinário Rebelo, onde é o corredor cultural, onde tem, nada mais nada menos, que o Trovador Berrante, bar do Zé do Cavaquinho. Não tem como você não ter poesia e não poetizar e fazer daquilo tudo uma poesia só. Ali, declamadores e entusiastas da cultura popular vivenciam diariamente.”
De um berço a outro
“São 13 anos que estou de volta a Maceió, 25 anos de estrada, com 48 de vida. Cheguei à minha terra para fazer história, no backstage. Puxando aquela fita, uma fita sonora que está ali no chão, faço as marcações todas do palco, para que o brilho aconteça.”
“Quando voltei para Maceió, o Centro foi o bairro acolhedor, meus primeiros giros. Me deparar com Edmilson, o ceguinho do Centro, com seu pandeiro – seu tambor – no sol de pleno verão, persistente, expressivo, vi um firmamento no largo da igreja do Livramento. Nessa vivência, nessa cultura, isso é manifestação que precisa ser valorizada.”
“Não há como adentrar ao Centro e nos depararmos com olhares e sorrisos, que se deslocam numa movimentação, de saberes e de sabores. Tem tristeza, tem sorriso, mas tem uma energia muito para o além, que transforma a mente da gente o dia todo, todo dia.”
“De repente, conheci o Terço, 14 Bis, Lô Borges, Beto Guedes, Clube da Esquina, que foi meu primeiro contato com a música que me inspirou. Depois vieram AC-DC, Rush, The Purple, e outros, e a cultura popular, e os mestres. Daí, misturei tudo numa coisa só e trouxe para minhas criações. Por isso, na minha musicalidade, há uma guitarra que soa um pouquinho diferente e os tambores sempre presentes. Fui me desenhando com o violão e fazendo disso tudo uma poesia.”
“Meu instrumento é o violão desde os 14 anos. Eu gosto do violão e da voz. E a poesia já nasce a cada passo, porque o mundo já é pura poesia, concreta. Abstração que a gente cria na mente. Tive só um professor, numa turma de uns 15 alunos, eu, sem instrumento, esperava algum parar de tocar, para pedir o violão emprestado. Aprendi primeiro do que todos eles e, a partir dali ,eu segui tocando.”
“Sinto a poesia em tudo que faço. Busco musicalizar. Diante das manifestações culturais, esse universo onde o folclore abastece os conteúdos, e as atitudes manifestas alumiam uma nova realidade. Como eu tenho essa coisa muito forte com a cultura popular, advinda lá de minha terrinha, da Viçosa, onde vivi da infância até meus 35 anos.”
“Eu já compus para vários artistas. Tenho trinta e nove canções gravadas, artistas alagoanos e paulistas. Tenho boas parcerias lá fora, onde sou conhecido como cantor e compositor. Fiz show no Teatro da Rotina, com Gama Júnior, numa turnê em Sampa; gravei a música ‘Laroyê’, e fiz uma homenagem a Jurandir Bozo, que, para mim, é o mestre contemporâneo do coco alagoano.”
“É esse mix de muitos artistas que vai me alimentando e fazendo com que eu continue seguindo sem medo do fim.”
“Cheguei a cursar a universidade, Administração, na FAMA, aqui no Centro, no Colégio São José, e dei prosseguimento na UFAL, de 2009 a 2011. Até que, certo dia, depois de uma discussão sobre processo cultural e as manifestações culturais, em sala de aula, o professor, de repente, me aconselhou: – Você está fazendo Administração para quê? É um canudo que você quer? Saia, vá para o mundo, isso aqui é para quem quer administrar empresas, você é administrador do mundo, é cidadão da rua. O que me fortaleceu para caramba. Aí, eu me disse: – Sim, é a arte que eu quero.”
Um rio em sua vida
“No rio Paraíba, vindo lá de Bom Conselho, em Pernambuco, sempre me banhei, me alimentei muito dele também. Gostava muito de pescar, eu sempre fui um menino cidadão da rua, nunca gostei de ficar em casa. Hoje, sou mais caseiro. Vivi na beira do rio com uma varinha de pescar carás, jundiás, cascudos, chiras, mutuns.”
“Ou nos mergulhos, com a meninada, diante os conselhos dos mais velhos sobre a profundidade e redemoinhos, no poço do cego. ‘Menino que pula em rio nunca deixa a cabeça embaixo d’água’. Só nada com a cabeça fora da água. Seguia a maré e ia sair bem distante, nunca íamos contra a maré.”
“É o caminho dos sete destinos. Tenho uma música chamada ‘Feito água de rio’, disponível nas principais plataformas. Eu digo que, quando você é água de rio, você passa pelas pedras, pode ter o tamanho que for, que as águas passarão. Eu sou feito água de rio, se a vida me deu a ousadia, sigo a vida como as águas.”
Sete Destinos – a travessia
“A versatilidade que a arte me dá de criar um palco, não quero só a marcação ou a montagem, quero ver a felicidade do público, ver o artista, dentro do palco, montado por mim, feliz, dando o melhor de si, como dei pelo palco que se exibe. O palco é um templo que respeito muito. Respiro o palco. Quando subo, é para resolver, meu nome é solução.”
“Em ‘Sete Destinos’, tudo feito por mim. Os músicos, eu direcionei, a cenografia, o desenho de luz, com gratidão a Edner Careca, com quem aprendi muito.”
“Venho, por este trajeto, contando essa história, para que outras histórias também eu possa cantar a partir dessa poética, que os Orixás me permitem. A partir do momento em que peço licença para adentrar a cada terreiro, a cada Ori, pra vir aqui cumprir os sete destinos.”
“Esse show marca a trajetória, vivenciada a cada pedaço desse chão, dessa coisa afro-indígena que existe na gente. Comecei menino, com a apreciação dos tambores, inclusive, logo que retornei para Maceió, há 13 anos, procurei Wilson Santos, um Ogan, o homem do tambor, que teve a responsabilidade de me encantar e dizer que aquilo é sagrado, que não há segredo e que eu só sinta, apenas sinta. Esse aprendizado fez com que eu tenha essa alegria, de me permitir o acesso da minha liberdade, o valor do respeito recíproco.”
“Cantar o Candomblé, cantar a Umbanda, ainda é uma ousadia, com toda discussão sócio-cultural que temos. Ainda há uma barreira enorme, mas água mole em pedra dura tanto bate até que fura. E, a gente presta atenção, a fresta acontece e passamos por ela, e o sol vai ser único para todo mundo.”
“Eu penso muito nisso. Por isso, venho com ‘Sete Destinos’, sete composições autorais, participação mais que especiais de Gama Júnior, Eduardo Proffa, May Honorato e Mateus Aleluia Filho. Antônio Augusto, produção e direção musical; Gama Júnior, na flauta, e eu com meu violão. Além do público que também vai participar.”
“Essa sonorização nasceu dentro da UTI de um hospital. Eu, com Covid 19, ouvindo o som das bombas, por 19 dias, dos quais, nove, entubado. Até a cenografia, que vai estar exposta, vem de lá. Ali dentro, tudo era poesia, mesmo assistindo a sofrimento e mortes.”
“ ‘Sete Destinos’ são sete músicas, mas o show, devido a regras do projeto ‘Quinta no Arena’, deve ter um mínimo de tempo de 1h20. Então, incluí mais cinco músicas, para cumprir. São 11 músicas de minha autoria e uma do mestre Mateus Aleluia. E ainda uma especial, que será cantada pelo Mateus Aleluia Filho, não lembro o autor, ‘Cordeiro de Nanã’.”
“Estou fazendo tudo com muito carinho, muito respeito a cada Ori, que vai chegar aqui, nesse terreiro mágico chamado Teatro de Arena, 51 anos de história.”
Poéticas
“Minha base é a poética, essência dos declamadores viçosenses. Escutar Sebastião do Guerreiro: ‘Se a mocidade fosse uma mercadoria, eu comprava todo dia no dinheiro ou no cartão, se ela custasse um milhão, eu ia ficar com ela, dividir em parcelas e pagar na prestação’. Envelhecer nunca. Isso é sabedoria popular.”
“Nenhuma tempestade é eterna
No tempo que muda o tempo todo
Tem fardo que pesa mais um pouco
Com a cobrança da vida moderna
É preciso só ficar alerta para se equilibrar na corda bamba
Veja, que a vida é uma cabana que protege com sua coberta
Na vida se erra e acerta por ser são ou louco
Se topa até num toco para seguir na linha certa
Pois há vias tão incertas nesse mundo tão sacana
Mas veja que a vida é uma cabana que protege com sua coberta
Cada passo dado numa fresta conquista-se um novo caminho
É preciso ir além do ninho e perceber o que ainda resta
Separar o que presta do que não presta
Para a consciência não ser desumana
Mas veja que a vida é uma cabana que protege com sua coberta”
“Quando a gente acorda, principalmente quando a gente alumia a mente da gente, antes do sol amanhecer, que a gente peça licença ao universo, para perceber o melhor, para se amar e amar alguém. Para fazer essa diferença, para fazer esse soar, para poder ser gente, e, quando acordar, por favor, acordem acordes, soem músicas, soem poesias.”