Nascido no quilombo Santa Luzia, no município de Santa Luzia do Norte, em Alagoas, iniciou-se na observância dos gestos dos Ogãs nos terreiros, foi para os atabaques da capoeira e dança afro, montou bandas e grupos, fundou a Orquestra de Tambores de Alagoas. Adentrou na academia e sonha em contribuir com o movimento de conscientização e reconhecimento da cultura afro em Alagoas, no Brasil e no Mundo.
A ancestralidade
“Penso que a influência dos tambores vem desde a barriga da minha mãe, que frequentava alguns terreiros, a vibração dos tambores já me influenciam desde dentro da barriga da minha mãe, está em meu DNA, está na memória do meu subconsciente, e que um dia, já adolescente, vim externar.”
“A musicalidade de origem africana, afro-brasileira, afro-cubana são musicalidades de uma complexidade imensa, não deixam nada a dever para nenhuma outra cultura e que, muitas vezes, é colocada em segundo plano, como cultura popular. Você pega um ritmo afro-cubano, por exemplo, que é tocado no tambor, que é chamado de Ilú batá, são três tambores, quando vemos aquela complexidade, do que aqueles músicos fazem ali, é muito forte. É o poder do tambor em todos os continentes, a percussão está como base do desenvolvimento humano, não só musical.”
“A música africana é a base de grande parte de música universal, para onde se for, vai se ter os rudimentos da musicalidade africana como base, vai para o blues, para o jazz, para o rock’n’roll, o reggae, a salsa, o merengue, até o tango, que é argentino, mas tem origem afro-bantu.”
Construindo o instrumento
“A construção de instrumento se deu ainda na fase intermediária entre a infância e a adolescência, quando senti a necessidade de ter alguma coisa para tocar, porque era só nas panelas de casa em cima da cama, até então. Foi quando vi um amiguinho fazer um tamborzinho com uma lata, com uma tira de câmara de ar de carro, tirava os tampos da lata, arrumava um plástico grosso, que era para fazer a pele, e tinha que ter duas pessoas, cada um estica uma ponta e o outro vem com a borracha e amarra em uma das bocas da lata. Tinha uma duração curta. Fizemos muito barulho em casa, pelas ruas e até bandas criamos.”
“No início, quando comecei a dar aulas, ensinava também a confecção dos instrumentos, que ficou uma característica bem forte da orquestra. A gente confeccionava os instrumentos em casa, tenho uma oficina em minha casa. Não ensino mais a confecção dos instrumentos, trabalho hoje só com o ritmo, percussão, atabaque, pandeiro, Atualmente estou dando um curso de percussão para mulheres, especificamente para mulheres.”
“Uma grande parte dos alunos até hoje confeccionam seus próprios instrumentos. Usamos também instrumentos de sons melódicos, flautas, pífano, harmonias, até música eletrônica. Temos usado esse diálogo entre a percussão com a tecnologia, fiz uns trabalhos, inclusive essa semana com o músico André Abujamra, um músico fantástico, especialista em trilhas sonoras. Tenho gravado também com o Fernando Melo, do Duofel, num excelente diálogo entre os tambores e as violas.”
“Os principais instrumentos que integram a percussão são o atabaque, o pandeiro (incorporado), o agogô e o xequerê. Aí vem o surdo, diambê, caixa, é uma infinidade de instrumentos. A percussão brasileira é de uma complexidade, até pela variação de elementos, que são muitos. Em cada estado tem ritmos diferentes, tem tambores diferentes, é uma riqueza imensa.”
A união faz a força
“A Orquestra de Tambores de Alagoas surgiu em 2004, inicialmente formada por ogãs, que são músicos afro-religiosos, percussionistas, criada na intenção de fazer música além do terreiro. Acostumados a fazer aquele som quadradinho, tradicional, do terreiro, na necessidade de criar artisticamente, de expandir os conhecimentos adquiridos, começamos no quintal, para nos divertir.”
“Originalmente somos 12 músicos no palco. Trabalhamos além dos tambores, com instrumentos de sopro, pífano, flauta, misturamos ritmos afro com ritmos populares da região Nordeste e alguma coisa de música eletrônica.”
“A partir de 2007, como a evolução foi muito positiva, logo estávamos rodando o Brasil quase todo. Gravamos um CD em Londres, o álbum “Bantus e Caetés”, o primeiro da Orquestra, com o selo da Far Out Recordings, com a participação especial de Naná Vasconcelos, na interpretação de “Mundaú-Nagô”; e da percussionista americana Layne Redmond, em “Mooyo.”
“Enfim, costumo dizer que o grupo superou as expectativas. Composto por músicos oriundos da periferia de Maceió, a Orquestra deu uma renovada no panorama percussivo do estado de Alagoas, incentivando novos grupos e acordando grupos que estavam adormecidos. Hoje, temos mais de 25 grupos percussivos na cidade, atuando. Demos um bug na matrix, por achar que não sairíamos do básico, mas deu frutos.”
A academia
“Retornei para a universidade exatamente com um olhar mais político, estou no quarto período do curso da licenciatura em Música. É importante, para mim, a absorção de conhecimento, mas não é tão importante quanto esse lugar de ator político na perspectiva de estar provocando políticas públicas. Sobretudo, as que reconheçam saberes empíricos dos mestres pretos e indígenas de Alagoas, que são reconhecidos internacionalmente por grandes estudiosos. Isso nas artes gerais, na dança, no teatro, por exemplo, o Chico de Assis, um exemplo vivo disso, que não fez academia, não fez universidade, mas é tido como um dos grandes atores do Brasil.”
“Hoje a universidade, a academia, em nível de Brasil, está começando a ter maior reconhecimento sobre essa questão, do que se chamava de cultura popular, que é cultura, é musicalidade. Hoje alguns mestres, em algumas universidades, que não tiveram a oportunidade de estudar, mas que têm conhecimento, que têm conhecimento empírico, que têm um conhecimento que foram adquirindo de uma forma diferenciada, estão tendo a possibilidade de serem reconhecidos com o Notório Saber em várias universidades federais no Brasil, a exemplo a USP, a UFBA e a UFPE.”
“Por exemplo, um mestre como o Chau do Pife, como o Wellington Pinheiro, no cavaquinho, a mestra Zeza, essas musicalidades não surgem de estudos acadêmicos, mas a academia tem o dever de reconhecer, no ponto de vista social, que é onde entra a questão do Notório Saber. E o Notório Saber é equivalente ao título de doutor. Se esses mestres têm o conhecimento, que dentro da universidade a gente não alcança, a universidade tem que reconhecer.”
“A luta tem sido para que a Universidade Federal de Alagoas, assim como outras universidades já estão como ponta de lança, para que se institua o Notório Saber e traga esses mestres para o lugar deles de direito, o lugar de reconhecimento desses mestres dentro da sociedade alagoana, pela suas importâncias.”
“Uma das minhas missões dentro da universidade, hoje, é trazer esses mestres à luz e dar para eles a notoriedade que merecem. É uma missão que a ancestralidade me deu e que eu aceito, abraço. Tenho estudado muito isso e tenho provocado positivamente a universidade a refletir a respeito dessa questão. Se isso é reconhecido em termo nacional, se é reconhecido dentro da comunidade, porque isso não deve ser reconhecido em nível acadêmico?”
A caminho do êxito
“Estou fazendo parte de uma rede de articuladores nacional, ainda como aluno. A ideia é preparar um documento para instituir o Notório Saber na Universidade Federal de Alagoas, que ainda não existe. E, os primeiros a serem chamados, são esses mais velhos. Eu puxei essa discussão, tenho o apoio do maestro Nilton Souza, que é doutor em musicologia, é negro, estou também tendo apoio do professor Marcos Moreira, diretor do ICHICA hoje, também negro, do diretor de cultura da UFAL, professor Sérgio Onofre, e estamos com o apoio também do reitor, Totonho.”
“Estou terminando um memorial descritivo para minha candidatura ao Notório Saber em percussão geral afro-brasileira, pela Universidade Integrada da integração Internacional em Lusofonia Brasileira, no Ceará, com maioria de alunos negros, que tem um convênio com os países de língua luso-africanas. No Nordeste, Alagoas é o único estado que ainda não tem o título de Notório Saber.”
Início da missão
“Toco percussão desde pequenininho. Eu nasci numa comunidade quilombola, mas não foi no quilombo que tive minha iniciação. Tenho a lembrança de sentir a energia dos tambores aos quatro anos de idade, eu já morava na Ponta Grossa e quase em frente da minha casa tinha um terreiro. Não lembro de que os toques vindos de lá tenham me influenciado, mas eu já comecei a fazer som com as panelas de casa, além do quê, não era permitida a entrada de crianças no terreiro. Só aos seis ou sete anos que realmente fui perceber, olhar mais de perto os toques vindos de lá.”
“Tive que fazer umas amizades com a galera que morava no terreiro, essa história que os meninos não podiam entrar. Quando tinha toque os pivetes da casa tinha que vazar. Insisti nas amizades, minha vontade era tocar no tambor. Quando havia festa, não podíamos entrar e quando não o tambor continuava lá, mas ficava coberto, eu tinha acesso, já que tinha feito amizade com os pivetes que lá moravam, mas não podia tocar, porque era instrumento de comunicação, se você tocar vai chamar orixá, era um dilema para mim. Então, o que me restava eram as panelas da minha mãe.”
“No final da década de 80, minha mãe mudou para o Vergel e, com jeitinho, consegui entrar nuns terreiros, mas não conseguia tocar, aí, uma coisa que aprendi depois, essa relação de aprendizado dentro do terreiro, ela se dá muito mais pelo olhar, você aprende muito mais pelo gestual. Não existe ensaio, é logo valendo. Você tem que escutar e observar os gestos.
Chegou uma fase, que um cara chamado Hildebrando, chefe Ogã do terreiro, pegou a toalha, ensopada de suor que usa no entorno do pescoço, me chamou, jogou a toalha no meu pescoço, e disse: – “Vou tomar uma água”. Ali foi minha consagração. Ali foi o primeiro momento”.
Encontro com a missão
“Você anda no Vergel, na Ponta Grossa, hoje, já não encontra mais terreiros como antes. Éramos envolvidos diretamente por aquele som que reverbera pelas ruas. Lembro que, nas sexta-feiras, eu e a pivetada saíamos pelas ruas ouvindo o som dos tambores e minha vontade de tocar não cessava, onde eu soubesse que havia tambor ia na cola. Descobri, no Sesc Poço, a capoeira, com o mestre Celso, onde pude tocar plenamente, só ia mesmo para tocar o atabaque. Eu tomei conta do atabaque, por anos fui ao Sesc para treinar o atabaque, nem jogava, não entrava na roda, queria saber só do batuque.”
“Minha escola foi essa, nos terreiros, na capoeira, onde houvesse manifestação popular, eu estava lá, porque o tambor estava lá, porque, como não tinha condição de comprar, pivete de periferia, eu tinha que ir aonde ele estava. Ainda no Sesc, conheci o pessoal da dança afro, o finado professor Tininho, Gil Amaral. Comecei a escutar os tambores e comecei a me aproximar deles, fiquei muito tempo aprendendo com eles também. Esse processo foi essencial. Agora, a cultura popular e a cultura afro foram elas que deram o embasamento total para minha trajetória na música.”
“Estou com 47 anos, tenho planos. Não são ambiciosos. Tenho sido mais seletivo e objetivo. Ano que vem estou querendo viajar, ir à Europa, a alguns festivais que vão acontecer por lá. Levar a percussão brasileira para ensinar lá, aplicar oficinas. Terminar a faculdade e contribuir com a UFAL também. Eu sempre enxerguei a percussão como uma ferramenta de inclusão, já participei de vários projetos, por osmose, que vão acontecendo na minha vida.”
“Houve casos de pessoas que chegaram às minhas oficinas com muitos problemas, doentes até, com depressão, ansiedade, e que, em contato com a percussão, quando chegam perto do tambor, sentiram-se aliviados, até curados, com relatos do quanto aquilo transformou suas vidas. A recorrência desses casos me fez ainda mais forte para dar continuidade deste trabalho, sempre visando à inclusão social, por valorizar o indivíduo enquanto ser, de ter esse espaço da percussão como um espaço catalisador, do tambor como uma ferramenta de transformação e um bálsamo para a alma.”
Sobre o bairro do Centro
“O bairro do Centro, para mim, é o coração da cidade. Das lembranças que tenho daqui, do que vivi e vivo aqui, se fosse colocar em uma palavra, seria liberdade. Porque quando vinha dos bairros periféricos que morei, pivete ainda, a sensação era de liberdade, da expansão da vida, e também é o que sinto hoje. Fui um menino danado, rodava todo o Centro, como se fosse um playground, um lugar que acho muito bonito e amo de paixão. E, digo mais, já rodei pelo Brasil afora e não há Centro mais bonito que o de Maceió, não há. Só está mal tratado, precisa ser mais bem cuidado. E as pessoas precisam participar mais da vida desse bairro, principalmente à noite.”