quinta-feira, 6 de novembro de 2025 – 13h05

“Maceió – A Cidade, as pessoas, as histórias (Leituras para a juventude)”

Foto: LulaCastelloBranco/NC

 

Apresentação

Nascer em Maceió não é escolher a cidade: é ser escolhido por ela, por sua terra, por suas águas – muitas águas – e por sua gente acolhedora e guerreira. Esses são os elementos, naturais e humanos, que produziram as grandes histórias, os dramas e superações, as aventuras. O livro Maceió – A Cidade, as pessoas, as histórias (Leituras para a juventude) – transforma os 500 quilômetros quadrados de área territorial da capital de Alagoas em um mar de histórias, contadas e vivenciadas por maceioenses da gema.

A obra é uma tentativa de obter uma argamassa da “alma maceioense”: quem somos nós? De onde viemos? O que fizemos? Para onde vamos? A publicação traz um verniz a mais: o coloquial, o compreensivo, uma lupa sobre a Maceió de ontem e de hoje.

Trata-se de uma coleção de verbetes temáticos nas áreas em que foi possível encontrar ao longo da pesquisa, da investigação, da vivência e da produção de reportagens: da Maçay-ó-k dos índios caetés tapando o alagadiço aos novos tempos, como lembrar os vultos do passado e trazê-los para o presente. São coisas, lugares e pessoas que abrilhantaram a história da capital. Os pedaços de cacos foram recolhidos, reconstruídos e reconectados com zelo e apuração aguçada, mesmo sabendo de antemão que não seria possível agradar a gregos e troianos: é uma obra aberta. Foram tantas e tantos os ilustrados maceioenses, homens e mulheres, da cultura popular aos eruditos, que houve dificuldade em escalar e perfilar. Dessa forma, decidimos limitar as homenagens in memorian àqueles e àquelas que nos deixaram bonitas histórias.

São textos apresentados de forma concisa, mas editados de modo a não comprimi-los em excesso, para que a publicação cumpra com eficiência o seu objetivo: instruir a todos os leitores, maceioenses, alagoanos e brasileiros. Principalmente, fazer a obra chegar à juventude.

E como diz o refrão do samba do cearense Zé Keti, “se perguntarem por mim, diz que fui por aí”, pelas esquinas de Maceió: encontrar o poeta Jorge de Lima e seus lampiões acesos; a psicanalista Nise da Silveira e sua alma bondosa; os romancistas José Lins do Rêgo, Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos, Aurélio Buarque, a Roda de Maceió dos anos 1930, no Café do Cupertino ou nos cabarés de Jaraguá.

Por se tratar de uma jornada espaço-temporal, fui, quem sabe, dar uma esticada nos terreiros afros da Ponta da Terra, herdeiros do “Quebra” de Xangô; afundar em um redemoinho nas lagoas de Calunga, de Jorge de Lima; descer a Ladeira da Igreja dos Martírios junto com a raposa de Lêdo Ivo, em seu Ninho de Cobras; ou deslizar nos canais e nas lagoas de Octávio Brandão. Andar pelos coqueirais, canaviais, Mata Atlântica, ou pelas florestas tropicais, onde fica a epidendrum alagoensis – a orquídea genuinamente nossa, descoberta pelo ambientalista maceioense Luiz Araújo Pereira.

No livro, Maceió é apresentada como um gostoso drops Dulcora quadradinho, dos antigos, embrulhados em seda um a um, palavra a palavra, verbete a verbete, numa linha do tempo que vai desde os primeiros moradores, os nossos queridos índios caetés, à herança negra e mestiça nos costumes, comidas e nomes das coisas da cidade. A cereja do bolo é a Maceió ilustrada pelas aquarelas mágicas do artista Eduardo Bastos. Uma boa leitura para todos.

Primavera de 2019,

Condomínio Rosa dos Ventos, Jaraguá

Mário Lima

Mário Lima e a paixão por Maceió. Ou o efeito Diderot.

* Bruno César Cavalcanti

O jornalista Mario Lima persegue o leitor, ou melhor, persegue um futuro leitor. Com este seu novo livro, ele tem como meta contribuir para a introdução de novas gerações nessa paixão de se sentir “de Maceió”, ou viver “em Maceió”. Na atualidade, com a massacrante imposição do material imagético sobre o textual, parece-nos que (quase) ninguém lê – ou parece não ler o que poderia ser, a um só tempo, fonte de prazer e de úteis informações. Ora, nesse momento em que nos remetemos aos seus 200 anos, Maceió merece ter ampliado o seu público cativo   e apaixonado por melhor conhecê-la. E ele, Mário – talvez pertencente à última ou penúltima geração de leitores que cresceram sem a internet, e apaixonado que é também pelo texto impresso e sem a virtualidade que a tudo aborda com um manuseio descartável dos conteúdos que transbordam ininterruptamente de suas (virtuais) páginas –, tenta aqui a sua “estratégia Diderot”, como demonstrarei a seguir.

O livro, portanto, volta-se à tarefa de “puxar” o leitor digital para o mundo material do papel. Ele proporciona a consulta sobre Maceió e, especialmente, sobre os seus habitantes representados nas figuras de alguns escolhidos para compor Maceió, a cidade, as pessoas e as coisas. Em forma de pequenos drops a saborear em qualquer ordem, trata-se de obra inicialmente caracterizada pela leitura descomprometida mas que, de certo modo, esconde um objetivo preciso e pontual que é o de seduzir seu leitor para as belas histórias (e estórias) da e na cidade fincada sobre a restinga a partir do outrora imenso areal tapando os seus primitivos alagadiços, como pensaram e cunharam os seus remotos ocupantes, o povo Tupinambá, o verdadeiro pessoal “da terra” que seria massacrado e chamado de selvagens, durante séculos reduzidos ao status de sanguinários e malditos. Eles, antes odiados e hoje elogiados na retórica corrente do marketing territorial, os índios Caetés.

Esta publicação colabora, assim, para a compreensão dessas nuançadas operações da His- tória local que ora enaltece, ora condena indivíduos e grupos sociais ou étnicos. Que o digam aqueles antes recepcionados enquanto “bandidos sociais” como Zumbi dos Palmares, o futuro “herói de Palmares”, ou como os já citados Caetés, mas também e ainda como o Calabar das guerras de expulsão dos Holandeses no século XVII e Antônio de Paula, o líder cabano das lutas nas matas alagoanas do século XIX.

Mas, o que teria isso a ver com o Denis Diderot, enciclopedista francês do século XVIII (1713 -1784)? O que haveria de comum entre ele e Mário Lima? Certamente nada de muito importante; ao menos para esclarecer essa alusão no título deste prefácio. E, então, por que aqui esse possível “efeito Diderot” que um livro do século XXI parece querer provocar? É que bem sabe o seu autor que muitos dos fatos narrados e das paisagens descritas são de conhecimento ainda muito restrito, padecem de uma maior, necessária e mesmo urgente circulação. Retomemos à ideia desse “efeito”, uma alusão metafórica do antropólogo canadense Grant McCracken para um pequeno acontecimento biográfico de Diderot que, entre tantas obras, como das Cartas sobre os cegos para uso dos que enxergam, foi um dos autores da famosa Encyclopedie (o outro foi seu parceiro, filósofo, físico e matemático Jean Le Rond D’Alembert). Estudando o consumo moderno em seu livro Cultura & consumo: novas abordagens ao caráter simbólico dos bens e das atividades de consumo, McCracken escreveu um capítulo denominado de “Unidades Diderot e Efeito Diderot: aspectos negligenciados do consumo”, no qual esclarece a sua remissão ao iluminista francês. 1

É que certa vez Diderot recebeu como presente uma bela veste, um robe. O próprio filósofo escreveu sobre o impacto da adoção desse robe em sua vida cotidiana.² Tratava-se de uma espécie de desarrumação de sua antiga rotina caótica, mas harmonizada com a vida que levava usando seu velho e surradíssimo robe, agora “encostado” pela adoção de um novo, mas cuja chegada alterou a harmonia de sua “unidade Diderot” e o deixou, ao final, angustiado e arrependido. O fato é que o chic robe adotado por Diderot lhe pareceu em desarmonia com o estado lastimável das cortinas de seu escritório, e ele, então, as trocou. Depois trocou a velha escrivaninha em que trabalhava, depois a tapeçaria, agora percebida como de aparência muito desgastada para coexistir com o belo robe, em seguida percebeu ele as cadeiras como igualmente incompatíveis, depois as estantes também foram  julgadas inadequadas,  e assim por diante. E tudo o deixou desapontado, pois, como escrevera, “a harmonia está destruída. Agora não  há mais consistência, não há mais unidade”; o que levou Diderot a concluir que tudo era con-sequência de “um imperioso robe escarlate [que] forçou tudo o mais a se conformar com seu próprio tom elegante”.3

Refletindo sobre o sistema de consumo moderno, McCracken sugere que as ‘unidades Diderot’ são complementariedades altamente consistentes de bens de consumo.

O ‘efeito Diderot’ é uma força coercitiva que as mantém. A unidade e o efeito, aqui nomeados por causa do filósofo iluminista francês Denis Diderot, são instrumentos-chave com os quais a cultura controla o consumo. O efeito Diderot é particularmente interessante porque é capaz de operar de duas maneiras totalmente diferentes. Pode compelir o/a consumidor/consumidora a permanecer dentro de seus padrões de consumo existentes. Mas, em uma segunda modalidade, pode forçar o/a consumidor/consumidora a transformar esses padrões de consumo para além de qualquer reconhecimento 4.

Então, leitor, o que pretende Mário Lima senão provocar um efeito Diderot em você, e com final feliz? O que extraímos da lição do filósofo é que às vezes um elemento novo introduzido pode trazer consigo as razões para uma outra formatação, uma nova forma de conexão que proporciona um realinhamento dos indivíduos com o mundo exterior, com seus lugares e seus significados. Seria isso possível com os hábitos da leitura?

Sem dúvida, o que consumimos sob a forma de informações proporcionado pelo que lemos pode indicar a permanência ou a mudança de nossa “unidade Diderot”. No caso, trata-se de uma aposta num “efeito Diderot” de mudança, de uma provável descoberta para leitores desavisados da existência dessa “alma maceioense”, como sugere Mário Lima.

1 Este é o título da edição brasileira lançada em 2003 pela Mauad – RJ [Tradução de Culture and consumption: New Approches to the Symbolic Character of Consumer Goods and Activities, 1988].

2 McCracken cita o texto Diderot “Regrets on parting with my old dressing gown”.

No limite, pode ser um efeito de manutenção e de reforço àqueles cuja “unidade Diderot” já experimenta a plenitude desse vínculo telúrico com Maceió. Ao contrário do filósofo – que teve a sua harmonia quebrada pelo transtorno que o tal robe escarlate lhe trouxera, desestruturando o seu antigo mas harmonioso caos doméstico –, aqui se trata bem mais de estabelecer uma outra unidade Diderot para uma juventude que, não raro, desconhece as delícias de ser ou de sentir-se maceioense a partir da tomada de conhecimento de aspectos da sua história, das coisas, dos lugares e das pessoas que formaram, formam e dão substância singular à vida na cidade.

Portanto, a menção ao pensador francês e à sua angústia nada tem a ver com o caráter aparentemente “enciclopédico” da seleção temática deste livro de Mario Lima, pois a Encyclopedie dos filósofos tinha de fato uma pretensão gigantesca e universalista; bem ao contrário do projeto deste livro que se quer única e propositadamente restrito à vida da Maceió da Nega Juju, da Mundaú, do ‘Salgadinho’, do Guerreiro, de sua boêmia ou da memória de seus antigos carnavais, de tantas outras coisas como os recantos paradisíacos e personagens tão singulares, reais ou imaginários, dessa sururulândia. Almeja o autor atrair novos leitores para o conhecimento da realidade histórica, política, estética e, em resumo, cultural de Maceió. O efeito Diderot desejado pelo autor é o de transformar e de criar novas unidades Diderot em seus leitores!

Escrita com as qualidades do sabor e da leveza, este Maceió, a cidade, as pessoas e as coisas está dividido em nove partes temáticas que destacam dados sobre o início da ocupação colonial, com seus rechaços e conflitos com as populações locais, mencionando as relações iniciais com os traficantes das riquezas naturais, inicialmente franceses, o espanto do invasor europeu com as culturas dessas populações autóctones e o extermínio que se seguiu em nome da “guerra santa”. Descreve os passos da criação da futura cidade, a “transferência do cofre” de Marechal Deodoro e o ulterior desenvolvimento da nova capital de Alagoas, o mandonismo local decorrente do grande latifúndio estruturante da sociedade de agroexportação o que fundamenta Alagoas, o permanente jogo e monopólio dos poderes econômico e político, e outras tantas marcas da sociedade erigida nessas condições do território ocupado com a plantation da economia do açúcar. Mas nessa parte o livro já começa a exibir a singularidade de nossas formas próprias de ser e de estar, e o faz em inúmeras dimensões da vida local.

Seguem-se a apresentação de elementos considerados icônicos e curiosidades gerais como a passagem do Zepelim sobre o céu de Maceió, como os aviões amerissando na laguna Mundaú, e também importantes iniciativas no campo da produção artística, relatando o breve mas fulgurante intervalo em que fomos o ambiente de literatos de reconhecido sucesso nacional e internacional, o ciclo literário capitaneado por nomes como Graciliano Ramos, Jorge de Lima, ou “estrangeiros” com José Lins do Rego e outros. Também aparece uma lista de nomes de ilustres visitantes, gente que por aqui circulou/pernoitou, e sobre nós teceram as suas impressões nem sempre positivas, como o arquiteto Lucio Costa, de passagem para a Europa, ou Mário de Andrade hospedado pelo Jorge de Lima para tomar pé de nossos folguedos populares, e até mesmo a menina Clarice Lispector antes de se mudar e viver mais tempo no Recife, ou a já consagrada atriz e cantora Jeanne Moreau, que aqui esteve com Cacá Diegues para as filmagens de Joana Francesa.

33 Op. cit. , p. 152

4 Cf. Cultura & consumo – novas abordagens ao caráter simbólico dos bens e das atividades de consumo, p.151.

Por falar em gente, não apenas os mundialmente famosos ou os doutores letrados são al- vos dessa recapitulação da vida maceioense, estruturada que foi em seu imaginário por nomes oriundos do povão e aqui registrados na lembrança de figuras emblemáticas como o Moleque Namorador, o Ras Gonguila, o Pedro Tarzan, a Miss Paripueira etc. Junte-se ainda os nomes importantes na música popular brasileira, desde Augusto Calheiros e Jararaca a Hermeto Paschoal e Djavan.

Mas há no livro um destaque imenso aos literatos, aos poetas, cronistas e romancistas. Sob este aspecto, diga-se, o texto é muito econômico no que tange a setores como as artes plásticas, e mesmo o teatro, e especialmente à intensa movimentação musical da Maceió de hoje. Mas não se trata de uma seleção definitiva ou exclusiva, e sim de uma amostra do que temos e do que somos. Não é pouco, como obra introdutória, sobretudo se vier a causar o efeito Diderot de promover alterações no estado de coisas de nossa contemporaneidade marcada pelo alheamento quanto à leitura e ao conhecimento que não está na ordem do dia da prevalência temática de redes sociais que a tudo parece nivelar e igualar. O livro rompe com a hierarquia de sentidos e de valores culturais que precisam ser (re)estabelecidas para servir de referente, de uma espécie de “cultura bússola” para a navegação virtual na contemporaneidade. Ou seja, navegar continua sendo preciso, como afirmou o poeta, mas viver (sob um bom efeito Diderot) também é possível! Muito poderia ser dito acerca das virtudes desta nova publicação de Mário Lima, e a principal me parece ser a sua ousadia em desafiar o tempo das redes sociais e de sua aderência, em princípio, à superficialidade e generalidade. Mário Lima se propõe construir um texto fluido, rápido como a linguagem das redes, bem entendido, mas muito focado, muito objetivo e antena- do com o que deseja causar como resultado. Este é o propósito da necessária e urgente ruptura com o marasmo em que foi reduzido o contexto de leituras tal como normalmente praticada no consumo cotidiano das novas gerações. Talvez isso explique o acento do livro no aspecto literário que estrutura um dos nossos eixos mais bem sucedidos – o da literatura, da poesia – mesmo que isso, de certo modo, possa obliterar as marcas nada negligenciáveis de nosso bem característico universo musical, como já afirmado, extremamente original e, ao mesmo tempo, universal. No entanto, lembremo-nos, não se trata de uma enciclopédia, mas de uma pequena amostragem da vida desse lugar.

Por fim, é preciso informar com toda a objetividade que lhe seja necessária que o livro em apreço é absolutamente inovador em seu projeto e alvo preferencial. Temos com ele uma obra que, ao mesmo tempo em que busca a atualização do que de melhor se produziu sobre os temas aqui abordados, não deixa de cumprir a sua tarefa de buscar um alcance estendido e disponibilizado a todo cidadão que se volte para saber aonde vive e que qualidades possui este remoto areal de Maçay-ó-k , enfim, sobre quem e por que somos o que somos..

Maceió, Outubro de 2019.

* Membro do Laboratório da Cidade e do Contemporâneo e Professor de Antropologia no Instituto de

Ciências  da Universidade Federal de Alagoas. (LACC/ICS/UFAL)

Quando deixei Maceió,  fechei a porta do mar
e enxotei os navios que insistiam em seguir-me.
Tive que aninhar os ventos nos corredores
das casas brancas que guardam lacraias.
Mas o mar me acompanhou até nos sonhos,
igual ao sol azul que sustenta o mormaço.

O vento veio voando e era um bando de pássaros.
A chuva da minha infância continua caindo
com seu séquito de tanajuras e caranguejos.
Até as dunas caminham ao meu encontro
E me rodeiam, exigindo que eu devolva
a chave de areia e o oceano roubado.

O Ladrão”, poema de Lêdo Ivo, do livro Mar Oceano, 1987

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