sexta-feira, 31 de outubro de 2025 – 17h48

 A sandalha da filha de familha

Desde tempos imemoriais, as línguas, organismos vivos que são, passam por mudanças, que ora as vivifica, ora as mortifica.

No latim clássico havia várias palavras terminadas que eram em -lius, -lia e -lium, por exemplo, filius, filia e milium. No processo evolutivo, transformativo e criativo, passaram essas palavras, por vias metaplásmicas, já mesmo no latim popular a serem pronunciadas com leves e sutis alterações. E essas mudanças se foram perpetuanto nas línguas românicas (francês, italiano, espanhol, português…).

Filius passou a se dizer prosaicamente filho, tal como todos o empregamos. Filia padeceu da mesma matamorfose, passando a se dizer filha. O vocábulo milium foi vítima ou beneficiário do mesmo processo, vindo a tornar-se o nosso doce e saboroso milho, cujas delícias experimentamos assada, cozida, em forma de canjica, pamonha, cuscuz…

A todas essas palavras ocorreu um processo já conhecido de quem nos leu a última coluna (se não a leu, pode vê-la aqui: https://noticiasdocentro.com.br/colunas/hudson-canuto-alagoanes/eitcha/), a nossa famosa palatalização.

Acontece, porém, que nem todas as palavras, terminadas em -lius, -lia ou -lium, submeteram-se ao processo. Rebeldes ou altaneiras, insistem em conservar, na escrita pelo menos, sua forma latina ou latinizada. Tal é o caso de família e sandália, só para ficarmos com uns parcos exemplos.

No texto, usamo-las assim; mas na fala, que é mais inovadora, o mesmo não se dá. Ali, segue-se o porcesso de palatalização normalmente e ouvimos dizer familha e sandalha sem qualquer pejo ou escândalo. Mesmo porque não há razão nem para um nem para outro. A língua é viva e, por isso mesmo, nunca para, mas sempre avança. Muda e se reveste de roupagens sempre novas, sempre doces e sempre deslumbrantes.

Esse modo de falar está tão presente no falar que algum dia deverá ser dicionarizado e passará a ser a única forma tanto da fala quanto da escrita. A língua é um bicho arisco que não aceita domesticação, arreios nem selas. Anda solta nas pradarias da gramática, a contragosto desta e dos senhores gramáticos e museólogos da língua.

Eppur si muove – de qualquer forma, a língua se movimenta e nunca para!

Respostas de 2

  1. Lembrei, nesse contexto do linguajar mais popularesco, o que escutei outro dia, no mercado de Maceió: “minha alpercata pocou”. Aqui não associo alpercata à sandália, mas o verbo ‘pocar’, de uso bastante característico dos alagoanos, que ganha seu próprio significado, o que deixaria um sulista louco, sem saber bem o que se foi dito. Excelente iniciativa, Húdson, Delícia de texto. Parabéns.

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