Desde tempos imemoriais, as línguas, organismos vivos que são, passam por mudanças, que ora as vivifica, ora as mortifica.
No latim clássico havia várias palavras terminadas que eram em -lius, -lia e -lium, por exemplo, filius, filia e milium. No processo evolutivo, transformativo e criativo, passaram essas palavras, por vias metaplásmicas, já mesmo no latim popular a serem pronunciadas com leves e sutis alterações. E essas mudanças se foram perpetuanto nas línguas românicas (francês, italiano, espanhol, português…).
Filius passou a se dizer prosaicamente filho, tal como todos o empregamos. Filia padeceu da mesma matamorfose, passando a se dizer filha. O vocábulo milium foi vítima ou beneficiário do mesmo processo, vindo a tornar-se o nosso doce e saboroso milho, cujas delícias experimentamos assada, cozida, em forma de canjica, pamonha, cuscuz…
A todas essas palavras ocorreu um processo já conhecido de quem nos leu a última coluna (se não a leu, pode vê-la aqui: https://noticiasdocentro.com.br/colunas/hudson-canuto-alagoanes/eitcha/), a nossa famosa palatalização.
Acontece, porém, que nem todas as palavras, terminadas em -lius, -lia ou -lium, submeteram-se ao processo. Rebeldes ou altaneiras, insistem em conservar, na escrita pelo menos, sua forma latina ou latinizada. Tal é o caso de família e sandália, só para ficarmos com uns parcos exemplos.
No texto, usamo-las assim; mas na fala, que é mais inovadora, o mesmo não se dá. Ali, segue-se o porcesso de palatalização normalmente e ouvimos dizer familha e sandalha sem qualquer pejo ou escândalo. Mesmo porque não há razão nem para um nem para outro. A língua é viva e, por isso mesmo, nunca para, mas sempre avança. Muda e se reveste de roupagens sempre novas, sempre doces e sempre deslumbrantes.
Esse modo de falar está tão presente no falar que algum dia deverá ser dicionarizado e passará a ser a única forma tanto da fala quanto da escrita. A língua é um bicho arisco que não aceita domesticação, arreios nem selas. Anda solta nas pradarias da gramática, a contragosto desta e dos senhores gramáticos e museólogos da língua.
Eppur si muove – de qualquer forma, a língua se movimenta e nunca para!
Respostas de 2
Cada vez que venho aqui, tiro as sandalhas dos pés.
Lembrei, nesse contexto do linguajar mais popularesco, o que escutei outro dia, no mercado de Maceió: “minha alpercata pocou”. Aqui não associo alpercata à sandália, mas o verbo ‘pocar’, de uso bastante característico dos alagoanos, que ganha seu próprio significado, o que deixaria um sulista louco, sem saber bem o que se foi dito. Excelente iniciativa, Húdson, Delícia de texto. Parabéns.