quinta-feira, 24 de abril de 2025 – 20h26

A arte nas mãos

A poesia contida no labor de agulhar
Foto: AzerbaijanStockers/Freepik

Caros leitores, hoje, juntamente com os amigos, darei um maravilhoso mergulho no tempo: iremos ao século XIX em busca da simplicidade e da poesia que se escondem na prática cotidiana do uso da máquina de costura. Essa jornada nos leva à crônica de José de Alencar, máquina de coser, datada de 03 de novembro de 1854, e à memória afetuosa das mãos habilidosas de tantas costureiras e alfaiates que marcaram época em Alagoas.

“Dava gosto ver a máquina trabalhar; a cada volta da roda saltava a agulha, colhia o ponto e dava um nó […]”

Alencar descreve, com pitadas de ironia e ternura, o movimento da máquina, quase como se ela fosse uma criatura viva, um prolongamento da alma humana em forma de engrenagem. A arte do coser pode ser apreciada pelo seu valor prático, mesmo inserida nos aspectos corriqueiros do nosso dia a dia. Cada peça confeccionada era uma obra de arte, um testemunho da dedicação que permeava a vida cotidiana.

No centro de Maceió, por entre ruas onde o tempo ainda teima em caminhar devagar, era comum ouvir o som ritmado das máquinas de costura. Reavivando a memória, a Só Bordados, situada no beco São José, produzia para os maceioenses os bordados mais queridos da cidade. Nas décadas passadas, o traje masculino feito sob medida era símbolo de prestígio e cuidado: escolher o tecido, ajustar a barra, marcar os ombros — tudo era feito com calma e técnica, e até mesmo nas tarefas mais simples havia nobreza no ofício.

Lembro-me de figuras respeitadas, como o Sr. João Gomes, o alfaiate que confeccionava roupas masculinas com cortes estudados, tecido escolhido a dedo e acabamentos meticulosos. De portas abertas, com tecidos no colo, alfinetes nos lábios e uma fita métrica pendurada no pescoço, esses profissionais representavam, em seus espaços de criação, a resistência na arte e o apreço pelo ofício, perpetuando não só as técnicas, mas também a história do nosso povo.

A costura não era apenas uma atividade prática — era também uma forma de cuidado, de presença e de criação. Cada ponto carregava intenções, esperanças e sustento. Quantas famílias foram mantidas por esse ofício? Quantas mulheres, mesmo com pouca escolaridade formal, transformaram seu saber artesanal em autonomia? As costureiras, além de tecer tecidos, construíam também laços comunitários, contribuindo para a formação de uma identidade compartilhada. Seus ateliês eram, muitas vezes, modestos, mas verdadeiros centros de cultura onde se trocavam histórias e se reforçavam valores.

A crônica de Alencar dialoga com o presente ao reconhecer o valor do saber das mãos, do tempo da criação e do espírito que habita o trabalho artesanal. Mesmo quando o silêncio se impõe às atividades, o legado permanece: em uma peça bem feita, num ponto bem dado, na memória afetiva de um vestido que atravessa gerações. A arte do coser é, acima de tudo, um gesto de permanência; ao incorporar o corpo e a técnica, a máquina de costura torna-se um instrumento de transformação cultural, um ponto firme contra o esquecimento. Trata-se de um traço de identidade, aprendido com avós e mães, que se inscreve não só nos tecidos, mas na própria história da cidade.

Quando criança, eu apreciava sentar próximo à máquina e observar como um simples instrumento, movido apenas pela força mecânica de quem o impulsionava, reunia mente e corpo em uma única ação, transformando tecidos planos em belas peças. Retomar a valorização do saber das mãos, do tempo da criação e do espírito que habita o trabalho artesanal faz-me refletir sobre o quanto nossa cultura precisa de nós.

A crônica de Alencar, ao mesmo tempo em que ironizava o gesto manual comparado ao funcionamento da máquina, revela que, mesmo diante do progresso e da mecanização, a essência do fazer com as mãos permanece insubstituível. Essa poesia contida no labor de agulhar e costurar transcende o simples mecanismo, transformando cada ponto numa expressão de vida, de cuidado e de memória. Afinal, é nas pausas para ajustar um tecido, nos cortes precisos e nos detalhes meticulosos que se encontra a verdadeira arte — a arte de vestir, de cuidar e de celebrar a singularidade de cada peça e de cada história.

Ao unir os ecos da crônica de Alencar com a nostálgica reverência às práticas de costureiras e alfaiates alagoanos, reafirmo que o saber das mãos e o tempo da criação são, acima de tudo, um legado cultural: um ponto firme que une passado e presente, transformando a rotina em um permanente manifesto de beleza e autenticidade.

E hoje, em meio à sociedade do consumo acelerado, onde a moda se impõe de forma frenética e muitas vezes impessoal, resgatar e valorizar o tempo da criação é, antes de tudo, um ato de amor e resistência. Lembrar que as técnicas passadas de geração em geração e as mãos que silenciosamente transformavam o ordinário em extraordinário ainda possuem um lugar privilegiado em nosso imaginário coletivo permite que a cultura esteja sempre viva conosco.

Respostas de 3

  1. Que texto belíssimo, com alma e emoção.
    Quantas lembranças tenho do centro, a só bordados onde delicadamente selecionarmos nas pastas qual bordados queríamos.

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