O poeta e jornalista Alexandre Câmara lança, em julho de 2025, seu primeiro livro impresso: O Mar Salva Mas Afoga. Após quatro décadas escrevendo em silêncio — acumulando mais de 500 poemas —, o autor estreia com uma obra que nasce do cruzamento entre memória, crítica social e desejo de refundar a sensibilidade política a partir do Sul global.
Trata-se de uma literatura que recusa rótulos e moldes prontos, e que busca outro tempo, outro tom, outro corpo para a linguagem. Alexandre não escreve para impressionar o centro — escreve para libertar a margem. Seus versos caminham entre o sagrado e o sujo, o território e o delírio, o afeto e a revolta.
Insurgência civilizatória: memória, denúncia e poesia viva
Alexandre escreve como quem escava ruínas e planta novas sementes sobre os escombros. Em seus poemas, as civilizações originárias não são lembradas com lamento, mas com reconstrução simbólica. As catedrais erguidas sobre o sangue indígena são denunciadas em versos, que misturam mística e fúria. A fome, o colonialismo e os algoritmos que perpetuam dominação são expostos como estruturas de extermínio.
Sua escrita se alinha à linhagem crítica de Eduardo Galeano, Ailton Krenak, Achille Mbembe e Frantz Fanon — mas, ao contrário da prosa discursiva, sua denúncia se dá por meio da música do verso, da imagem dilacerada, da espiritualidade insurgente. Seu diferencial está aí: transformar crítica em canto, história em gesto lírico, política em matéria do sagrado.
A estrada e os espelhos partidos: contracultura como modo de existência
Neste eixo, Alexandre se aproxima da linhagem beatnik. Mas a estrada que percorre não é a da Califórnia — é a do nordeste, das BRs mal iluminadas, dos becos de Maceió, das noites em silêncio. Como em Ginsberg, Caio Fernando Abreu, ou Pedro Lemebel, sua escrita rompe com os valores sociais impostos. Mas vai além: renuncia ao pertencimento, como quem queima a última ponte.
A estrada, para ele, não é metáfora: é destino. Os espelhos quebrados dos pubs, nos quais já não se reconhece. As fogueiras solitárias nas madrugadas, acesas como amantes efêmeros. O ermitão, que busca não isolamento, mas espiritualização — longe da máquina do mundo, perto de alguma verdade inegociável.
Sua linguagem, por vezes queer, é também mística, ritualística, desnuda. Mas não clama por identidade — apenas por permanência. A contracultura aqui não é pose: é vida limpa da máscara. E sua poesia é o último abrigo antes da desintegração.
Território, raízes e reinvenção simbólica
Seus poemas reencenam uma Alagoas anterior ao cristianismo, onde os deuses não são punitivos, mas encantados. Alexandre escreve sobre os povos originários sem exotismo, devolvendo-lhes o que lhes foi arrancado: complexidade, tempo, dignidade e beleza.
Seu diálogo com autoras como Eliane Potiguara, Conceição Evaristo e Ali Cobby Eckermann não se dá pela forma, mas pela intenção: reconstruir territórios simbólicos soterrados pela história oficial. Sua Alagoas mítica é tão verdadeira quanto a real. Seus personagens esquecidos ganham a eternidade da linguagem.
Mais que memória, ele propõe um novo sistema simbólico. O livro é uma maré que recua, que revela ossadas, que afoga e salva com o mesmo gesto. A linguagem, para ele, é instrumento de retorno e de invenção. É o que resta quando tudo falha. É o que funda quando tudo desmorona.
A travessia: por um novo sistema simbólico e poético
Na travessia, Alexandre bebe de fontes filosóficas e sociológicas contemporâneas. Pensadores como Zygmunt Bauman, autor de Modernidade Líquida, alertam para a fluidez das relações e a fragilidade das estruturas sociais. A crítica de Shoshana Zuboff ao capitalismo de vigilância aponta para os algoritmos, como nova forma de subjugação. Mark Fisher, em Capitalist Realism, denuncia a ausência de alternativas viáveis, e Murray Bookchin propõe movimentos descentralizados e a refundação dos sistemas sociais .
A tradição do pensamento radical — de Cornelius Castoriadis, defensor da autonomia constitutiva da sociedade — encontra na sua poesia uma tradução sensível do imaginar coletivo. Assim, O Mar Salva Mas Afoga não é apenas um livro: é a escrita de um novo sistema social simbólico — qual novo código civil de escuta, espaço, tempo e comunidade.

O diferencial que o torna necessário
União de linhagens sem colagem
A maioria dos escritores se aproxima de apenas um eixo temático ou estilístico. Alexandre reúne três: a insurgência crítica, a contracultura existencial e a ancestralidade espiritual. E o faz sem costura aparente, sem artifícios — como se essa fusão já existisse dentro dele desde sempre. É coerente e orgânico porque nasce da vida vivida, não de uma proposta editorial.
Poética de travessia
Sua escrita não se limita à denúncia. Ela propõe travessias simbólicas e concretas. Há exílio, mas há também retorno. Há ruína, mas também refundação. Sua poética tem a forma do movimento: não se fixa, não se acomoda, não repete. Cada poema é uma espécie de rito para passar por dentro da dor — e sair de outro jeito.
Refinamento formal e radicalidade de conteúdo
Os poemas de Alexandre carregam densidade sem abandonar a beleza. São textos que exigem do leitor sensibilidade e escuta, mas que devolvem em profundidade, ritmo e imagem. A radicalidade do conteúdo — crítica social, descolonização simbólica, desejo, morte — aparece em contraste com a contenção precisa de sua forma. Isso o aproxima de clássicos — mas sem se parecer com nenhum.
Ausência de performance, excesso de presença
Alexandre não escreve para o aplauso. Sua poesia é ausência de espetáculo. O que existe é presença. Presença de memória, de corpo, de lucidez. Ele não representa ninguém — ele se representa. E, nesse gesto, funda um espaço de pertencimento raro: o da liberdade poética como forma de existência.
Uma voz do Sul que fala por si
Alexandre não busca lugar — ele o constrói. Sua literatura emerge da encruzilhada entre o passado apagado, o presente insustentável e o futuro que ainda não chegou. É o tipo de escrita que antecipa sua própria época. Que exige leitura devota, mas devolve revelação.
Não há como compará-lo. Porque sua obra nasce da recusa da comparação como sistema. É um lugar novo. Um sistema poético próprio, onde mar, silêncio, ruína, permanência e reinvenção do futuro se entrelaçam com a mesma dignidade. Um livro que não deseja ser moderno nem eterno — apenas verdadeiro.
Escreve desde quando nem havia celular ou mesmo computador. Muitos dos poemas que integram sua trajetória nasceram à mão, datilografados, rascunhados em cadernos, em noites de insônia, solidão e escuta. Ao longo do tempo, como a própria humanidade, passou a se valer também de recursos contemporâneos que hoje ampliam, mas jamais substituem, a experiência originária do fazer poético. O que emerge agora é fruto de uma travessia longa — e da fidelidade a uma voz que sempre esteve presente mesmo em silêncio.
Conclusão-manifesto
O Mar Salva Mas Afoga não é apenas um título. É uma sentença de mundo. Alexandre Câmara entrega ao Brasil e ao Sul Global um livro que não pede admiração — pede escuta.
E essa escuta, quando enfim chegar, reconhecerá que este não é apenas um poeta que estreou tarde. É alguém que esperou o tempo certo para fundar o que ainda não existia.