Resgatar, por meio do registro audiovisual, a história do Quebra de Xangô, de 1912, em Alagoas, foi um dos objetivos do curta-documentário de 2024, “Cartas à Tia Marcelina”, de João Igor Macena. Evento marcado pela intolerância religiosa e violência aos terreiros de Xangô e, mais especificamente, à figura emblemática de Marcelina Quirino da Costa, a iyalorixá Tia Marcelina, o Quebra é contado por meio de depoimentos de líderes religiosos, historiadores e representantes da cultura alagoana, em 25 minutos que traçam um panorama histórico-cultural de Alagoas do começo do século XX, e a sua repercussão ao longo do tempo.
Nesta entrevista, o multiartista autodidata, egresso das Ciências Sociais e atualmente graduando em Dança, pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal) explica o processo de escolha do tema, a importância histórica do fato, a pesquisa bibliográfica, a seleção de depoimentos, a premiação recebida e o papel de Tia Marcelina para a cultura e religião em Alagoas. “A melhor ‘carta’ seria ver a prosperidade e o respeito com o povo preto, sua cultura e religião”, explica Macena, ao reafirmar o papel da religiosa no contexto da cultura de matriz africana no estado.
NC – Em suas palavras, do que trata o filme “Cartas à Tia Marcelina”?
JM – O filme é um resgate da memória do Quebra de Xangô e do impacto que causou na cultura e identidade alagoanas, ressaltando a participação de Tia Marcelina como uma grande detentora dos conhecimentos ancestrais e da mobilização política e cultural do povo negro para combater as opressões da época. Para além dessas violências, a potência e a produção do povo negro nos diversos segmentos da sociedade, inclusive no combate ao apagamento e silenciamento dessas personalidades históricas tão importantes.
NC – Por que o filme “Cartas à Tia Marcelina” tem formato documentário em curta-metragem?
JM – Para responder à essa pergunta, preciso falar do processo criativo. O filme surgiu numa disciplina eletiva do Curso de Teatro da UFAL [Universidade Federal de Alagoas], a disciplina de Produção de Imagem e Som, ministrada pela Prof.ª Dr.ª Ana Flávia Ferraz. Passamos por vários segmentos do cinema, e o trabalho final era a realização de um curta-documentário.
Dentre os temas propostos, “Tia Marcelina” foi o que mais nos chamou atenção, pela necessidade de dar visibilidade à essa história tão crucial para Alagoas, visto que isso reconfigurou a composição da cidade de Maceió. A perseguição do quebra durou muitas décadas, além do fatídico episódio que levou à morte de Tia Marcelina. Também acreditamos que esse formato e a maneira como foi construída a narrativa no filme tornam o acesso mais democrático e pode ser uma ferramenta pedagógica para ensinar e debater esses temas complexos e que ainda são tão contemporâneos.
NC – Quais dificuldades você encontrou na realização desta película?
JM – A nossa maior dificuldade foi a questão de tempo e recursos. Iniciamos o projeto, da pesquisa até a primeira versão, em cerca de dois meses. Como era um trabalho inicialmente acadêmico, tínhamos um prazo curto e o recurso mais curto ainda. Nesse sentido, o filme só foi possível graças à coletividade. Todos os envolvidos se dispuseram a colaborar com o filme sem custos. Além do fato de terem poucas pesquisas e referências à Tia Marcelina. Tivemos que montar um quebra cabeça e aí contamos com a oralidade das lideranças religiosas e dos intelectuais e pesquisadores negros que se debruçam sobre esses temas.
NC – Quais os seus principais parceiros e apoiadores?
JM – É um cinema independente. Depois de apresentarmos a primeira versão em sala de aula, ainda trabalhamos mais sete meses para chegar à versão que estreou em dezembro de 2024, na mostra de filmes do Festival Internacional de Documentário de Melgaço, em São Paulo. Logo depois, conseguimos aprová-lo na lei de incentivo cultural Aldir Blanc, para circulação. Desde então, temos conseguido levá-lo a vários lugares do estado de maneira gratuita, principalmente para instituições de ensino, centros religiosos, cineclube e outros espaços, que promovem a cultura alagoana.
NC – É o segundo ano consecutivo que o filme ganha o prêmio Concurso Curta Ecofalante, na Mostra Ecofalante de Cinema. Como esses prêmios impactam a sua produção?
JM – Na verdade, esse é o primeiro prêmio do filme. Anteriormente, já teve filme alagoano que participou da mostra, inclusive nesse ano também foram selecionados outros dois filmes daqui. O que nos surpreendeu com a premiação foi devido ao tamanho e impacto do festival, sendo o maior festival de cinema socioambiental da América do Sul. Concorremos com filmes de diversas partes do mundo. Já havíamos participado de outras mostras, mas a Ecofalante tem essa dimensão, então recebemos com surpresa e felicidade a notícia da vitória. Claro, acreditávamos na potência e beleza do filme, mas não esperávamos por conta do nível da competição. O prêmio vai viabilizar a circulação do filme ainda mais.
Toda nossa trajetória até aqui foi na correria de fazer dar certo, e esse prêmio chega como um acalanto, como a certeza de que estamos no caminho certo. É muito difícil viver e produzir arte no nosso estado, mas esse reconhecimento nos dá forças para continuar em movimento. Até o fim deste ano, estamos dedicados ao filme, mas depois já temos outros projetos no audiovisual, pensando sempre nas potências das histórias cotidianas do povo de Alagoas.

NC – Quais critérios foram usados para a seleção dos depoimentos?
JM – Para nós, era importante o protagonismo negro em tudo no filme. Então, tínhamos uma lista de lideranças religiosas e pesquisadores que gostaríamos que participassem. Claro que, devido à agenda de alguns e do curto tempo que tínhamos, acabamos não conseguindo registrar todo mundo, mas o foco era que essa história fosse contada através desses olhares mais sensíveis a essa história, porque, como pessoas negras, somos atravessados por essas violências até hoje. Temos uma maneira de olhar para o nosso passado e referenciá-lo sem um olhar enviesado da branquitude, sobretudo acadêmica, que sempre contou a sua versão sobre os fatos e ocultam a sua responsabilidade enquanto grupo social e subvertem… tornam heróis os nossos algozes.
NC – Quais fontes bibliográficas foram consultadas para a elaboração do enredo?
JM – Nossa pesquisa iniciou com a coleção perseverança. Na época, ainda em processo de tombamento, fomos apresentados à coleção, numa visita guiada pelo Prof. Anderson Diego, no Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas. Ele foi um dos colaboradores no processo de tombamento e havia registrado toda coleção. Depois, consultamos alguns artigos acadêmicos. No entanto, tudo o que havia sobre ela era muito vago, citações, passagens em alguns jornais da época…
Uma das pessoas que nos ajudou a elucidar essa história foi o Prof. Jeamersson, que tem uma pesquisa extensa sobre Mestre Zumba, que foi quem pintou o quadro famoso em homenagem à Tia Marcelina nos anos de 1980. Supostamente, a mãe dele havia conhecido Tia Marcelina, e ele teria visto ainda criança uma foto dela. Quando o prof. Edson Moreira encomendou o quadro, Zumba teria revisitado essas memórias de infância para pintá-la. Inclusive visitamos e entrevistamos também o prof. Edson, que é curador do Museu Quilombo Real, onde está o quadro e boa parte da coleção de Zumba, além dos Búzios que Zumba teria herdado da mãe e que supostamente era da Tia Marcelina.
Outra coisa que era importante para nós era o conhecimento oral que passa, de geração em geração, nos terreiros. É assim que a cultura negra foi passada adiante por muitos anos, e ainda é. Nesse ponto, um dos maiores conhecedores da história do Quebra e que faz mobilizações em torno dessas discussões é o Pai Célio. Foi a primeira pessoa que entrevistamos e que nos orientou também na pesquisa; além de Pai Maciel, que tem 105 anos e é o mais velho babalorixá de Maceió, e que conheceu sobreviventes do Quebra.
NC – Por que a escolha deste tema? Esse tema lhe interessa pessoalmente, ou o seu interesse é pelo fato histórico?
JM – A escolha, para mim, era óbvia desde o princípio. Eu ouvia falar do Quebra, mas sabia muito pouco, nunca aprendi na escola sobre isso. Eu sempre me interessei pelos temas raciais. Sou natural de União dos Palmares e cresci em meio à cultura e história dos quilombos. Também, como artista preto e LGBT, já vivi na pele diversas discriminações, e a arte se tornou um meio de aliviar esse grito de dor que o preconceito nos causa. Acredito que dar visibilidade para essas histórias nos permite afirmar um lugar de força e luta antirracista. De que nós não sucumbiremos a essas violências e resistiremos. Acho que é fundamental debater esses assuntos e, ao falarmos sobre esse fato histórico, ressaltamos que é preciso combater o racismo e a intolerância para que jamais se repita.
NC – O que você destacaria no documentário?
JM – Acho que é um documentário sensível sobre um tema tão brutal… Mas eu sempre me questiono sobre o que fazemos com as dores que nos atravessam, tenho acreditado que elas não devem nos definir. Então, para mim, o filme é sobre o legado de Tia Marcelina enquanto liderança religiosa que mobilizava grupos culturais e políticos e mexia com a estrutura social, num período que mulheres, negros e pobres se quer tinham direito ao voto, à representação… Então, o que se destaca para mim é ver tanta potência negra nos diversos segmentos, produzindo arte, educação, cultura, ciência e etc. É como ver a esperança de uma sociedade melhor, e que não somos somente as violências que nos impuseram.
NC – Para você, quem foi Tia Marcelina?
JM – Tia Marcelina foi uma mulher à frente do seu tempo. Forte, aguerrida e articulada, que organizava-se cultural e politicamente em prol do seu povo.
NC – No seu entendimento, se o violento episódio do Quebra de Xangô, de 1912, não tivesse ocorrido, como Tia Marcelina seria lembrada?
JM – Acredito que, ainda se não houvesse o Quebra, mesmo assim falaríamos dela como referência, pela importância das movimentações que ela carregava. Os terreiros também estavam associados com outras manifestações culturais negras, como a capoeira, o maracatu e etc. Tudo muda com o Quebra, porque as pessoas foram perseguidas e expulsas, levando com elas esses conhecimentos, e que acabaram se desenvolvendo em outros lugares, como em Pernambuco. Há um terreiro lá da Nação Xambá, que acreditam ter sido fundado por Tia Marcelina e que é único no Brasil. A própria força do maracatu em Pernambuco, que é mais valorizado lá, tudo isso é reflexo do Quebra. Conseguimos dimensionar algumas consequências, sobretudo na identidade alagoana.
Esse apagamento negro na nossa história foi proposital, uma maneira de interromper a força que a trajetória negra estava tendo. Tínhamos mais de 300 terreiros e uma população de maioria negra, isso assombrava a elite. Imaginar Alagoas sem ter passado por esse processo, seria pensar num estado que realmente se orgulha e valoriza suas raízes. Seríamos ainda mais ricos em saberes e cultura, e que talvez houvesse menos desigualdade social e menos exploração dos que vivem à margem da sociedade até hoje.

NC – Qual a importância de Tia Marcelina na história dos xangôs em Alagoas?
JM – Acho que posso ser redundante aqui (risos), pois acredito já ter respondido nas anteriores, mas ela foi a figura que se destacou pelo envolvimento que ela tinha na política, combatendo os preconceitos já naquela época. Ela vira essa figura central também a partir do momento que o movimento negro e os povos de terreiro resgatam e se apropriam da imagem dela como referência de luta. Inclusive, temos encontrado várias referências a ela durante as exibições, como quando exibimos o filme no assentamento do MTST [Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto] e a cozinha comunitária se chama Tia Marcelina. Entre outros lugares que também usam o nome e a imagem dela como homenagem e inspiração.
NC – Há historiadores que duvidam da existência de Tia Marcelina. O que você pensa sobre isso?
JM – Acredito que, na verdade, há muitas evidências da sua existência. O que fica obscuro são alguns fatos ligados ao Quebra, especificamente sobre o que aconteceu depois… Como, por exemplo, o número de mortos e desaparecidos ou presos, até mesmo como ela foi morta. Existem algumas versões, mas isso se justifica pela articulação política em apagar o episódio da história ou até mesmo justificá-lo, mas há charges e desenhos em jornais da época que falam dela, antes mesmo do Quebra… Claro que muitas dessas imagens são estereotipadas, mas há um registro da passagem dela pela história.
No filme, tem dois historiadores sendo entrevistados e contando o ponto de vista deles sobre, e acho que não há dúvidas sobre a sua existência. O que precisa ser questionado e investigado é a responsabilização dos autores e financiadores do Quebra, porque até hoje exaltamos figuras como Fernandes Lima e ignoramos o fato de ele ser um dos que financiaram este ato, que é registrado como um dos mais violentos do Brasil, tendo outro caso semelhante apenas no Rio de Janeiro.
NC – Hoje, qual o papel do Xangô Rezado Alto para a conservação da cultura afro-brasileira em Alagoas?
JM – Uma ferramenta de mobilização dos povos de terreiro para serem ouvidos, acolhidos e respeitados, porque mesmo com leis contra a intolerância religiosa, ainda há muitos casos recentes desses ataques. Acredito que o evento, além de preservar a memória do Quebra e das lideranças da época, tem esse papel democrático da expressão da diversidade cultural alagoana.
NC – Se não fosse nos moldes de um filme, de que outra forma você gostaria de entregar essas “cartas” à Tia Marcelina?
JM – Eu gostaria que tivesse havido justiça, porque, mesmo com o perdão, não foi suficiente. É preciso que políticas públicas sejam pensadas para combater a intolerância e fomentar a dignidade para os povos de terreiro. Acho que a melhor “carta” que Tia Marcelina e todos os outros mortos nesse genocídio receberiam seria ver a prosperidade e o respeito com o povo preto, tendo sua cultura e religião sendo celebradas, e toda perseguição chegando ao fim.
NC – Quem é João Igor Macena? Qual a sua formação?
JM – Eu sou um multiartista autodidata, egresso das ciências sociais e atualmente graduando em Dança pela UFAL. Um dos fundadores do Coletivo Del Diablo, voltado a projetos sociais e eventos culturais para o público LGBTQIAPN+. Sou pesquisador pelo núcleo de extensão e pesquisa das expressões dramáticas (NEPED – UFAL), onde atuo pesquisando o cinema trans em Alagoas. E também sou conhecido pelo meu trabalho artístico como a Drag Queen, Elza Evangelista, com diversos trabalhos publicados e expostos em museus e galerias nacionalmente e parcerias com diversos grupos culturais.
FICHA TÉCNICA DO FILME “CARTAS À TIA MARCELINA”
Direção: João Igor Macena
Assistente de Direção: Eduarda Sofia e Lino de Messias Yugen
Roteiro: João Igor Macena e Lino de Messias Yugen
Direção de Fotografia: Lucas Espíndola
Assistente de Câmera: Eduarda Sofia
Direção de Produção: Eduarda Sofia
Assistentes de Produção: Lino de Messias Yugen e Rita Lins
Produção Executiva: Lino de Messias Yugen, Ana Flávia de Andrade Ferraz e Rita Lins
Montagem: Lucas Espíndola
Assistente de Montagem: Eduarda Sofia
Direção de Arte: João Igor Macena
Figurino: João Igor Macena
Maquiagem: João Igor Macena
Preparação de Elenco: Lino de Messias Yugen
Colorização: Lucas Espíndola
Design Gráfico: Mickey Berto
Trilha Sonora: Yuri Limão
Design de Som: Yuri Limão
Som Direto: Lucas Espíndola
Still: Rita Lins
Suporte Logístico: Rita Lins
Elenco: Allan da Costa; Allexandrëa Constantino; Brenda Lima; Emanuelle Divino; George de Olicino; Henrie Santos; Israel Oliveira; Italo Azuos; Leide Serafim; Tamara Caetano
Narração: Leide Serafim
Entrevistados: Babalorixá Célio; Yalorixá Jeane; Tatalorixá Maciel; Alycia Oliveira; Jeamerson Santos; Danilo Luiz Marques.
Texto Adaptado: Uma Lembrança de Amor Para Tia Marcelina de Luiz Sávio de Almeida
Arquivo de Reportagem: O Perdão do Quebra/Xangô Rezado Alto – TV Pajuçara
Acervos Fotográficos:
Acervo Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas
Acervo História de Alagoas
Acervo Quilombo Real
Acervo Jesus Carlos/BBC News Brasil
Acervo Larissa Fontes
Músicas:
Banzo – Orquestra de Tambores de Alagoas
Mundaú-Nagô – Orquestra de Tambores de Alagoas
Zumba – Orquestra de Tambores de Alagoas
1912 – Tequilla Bomb