Pejotização: um atalho trabalhista que ameaça a Previdência
A pejotização tem sido tratada como uma tendência natural nas novas formas de trabalho. Mas o que ocorre quando essa prática começa a enfraquecer os pilares da seguridade social? O Supremo Tribunal Federal (STF), por meio do Agravo em Recurso Extraordinário (ARE) 1.532.603, colocou o tema sob os holofotes. O resultado pode alterar profundamente tanto as relações trabalhistas quanto a arrecadação previdenciária.
Nos últimos anos, o fenômeno vem ganhando força no mercado de trabalho brasileiro. O termo “pejotização” pode parecer técnico, mas se refere a uma prática cada vez mais comum — quando empresas contratam trabalhadores como pessoas jurídicas (PJs), em vez de firmarem vínculo formal de emprego com carteira assinada (CLT). À primeira vista, parece uma modernização das relações de trabalho. Mas há muito mais em jogo.
O trabalhador abre um CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica) e passa a emitir notas fiscais pelos serviços que presta, como se fosse uma empresa prestadora de serviços — mesmo quando atua diariamente como um empregado comum: com jornada fixa, subordinação, exclusividade e continuidade.
Ou seja, a pejotização transforma um trabalhador em “empresa” apenas no papel, para que o contratante reduza encargos trabalhistas e previdenciários. Essa prática tem sido usada em muitos setores, especialmente entre profissionais qualificados, como jornalistas, médicos, advogados, designers, engenheiros e até professores universitários.
O STF decidiu se debruçar sobre o assunto e realizou, recentemente, uma audiência pública para ouvir especialistas, sindicatos, representantes do governo e da iniciativa privada. A discussão acontece no contexto do Recurso Extraordinário (ARE) 1.532.603, e o que está em debate é crucial: até que ponto a pejotização é legítima e quando ela se torna uma fraude contra o trabalhador — e contra o próprio sistema previdenciário?
Quando o “PJ” mascara um empregado
A pejotização pode ser útil em situações específicas, especialmente em atividades altamente especializadas, com maior autonomia. No entanto, ela tem sido usada, muitas vezes, para esconder vínculos empregatícios reais. O trabalhador presta serviços com subordinação, horário fixo, exclusividade e continuidade — características típicas de um empregado. Mas, no papel, é tratado como uma empresa prestadora de serviços.
Essa manobra evita encargos trabalhistas e previdenciários por parte das empresas. Para o trabalhador, isso significa abrir mão de direitos como férias, 13º salário, FGTS e, principalmente, uma proteção adequada no futuro, quando chegar a hora da aposentadoria ou em caso de invalidez, por exemplo.
Impacto na Previdência: menos arrecadação, mais fragilidade
A previdência social funciona como um sistema de repartição: os que estão na ativa financiam os que estão aposentados. Quando há uma crescente substituição de empregados por PJs, a arrecadação do INSS cai — já que muitas dessas pessoas deixam de contribuir regularmente ou contribuem com valores bem menores do que contribuiriam se estivessem sob regime celetista.
O Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP), que participou da audiência pública no STF, alerta que essa tendência pode comprometer a sustentabilidade do sistema previdenciário a médio e a longo prazo. Menos contribuições hoje significam menos recursos para pagar benefícios no futuro.
Modernidade ou precarização disfarçada?
É evidente que as relações de trabalho estão mudando. A economia digital, os contratos por projeto e a autonomia profissional são realidades do século XXI. O problema é quando a “modernização” serve apenas como eufemismo para redução de custos às custas da segurança social do trabalhador.
Muito além das questões formais sobre contratos e contribuições, a pejotização escancara uma realidade preocupante: a precarização progressiva das condições de trabalho no Brasil. Ao transformar um vínculo empregatício típico em uma “parceria” entre empresas, apagam-se garantias que foram duramente conquistadas ao longo da história pelos trabalhadores brasileiros — garantias essas que estão claramente asseguradas na Constituição Federal.
A Constituição de 1988, apelidada de “Constituição Cidadã”, estabelece no artigo 7º uma série de direitos fundamentais dos trabalhadores, como:
- Vínculo empregatício protegido contra despedida arbitrária;
- Jornada limitada a 8 horas diárias;
- Repouso semanal remunerado;
- Férias anuais;
- 13º salário; e
- Contribuição previdenciária, com acesso a benefícios como aposentadoria, auxílio-doença e pensão por morte.
A pejotização, quando usada para mascarar vínculos, ignora ou dilui esses direitos. O trabalhador PJ — muitas vezes sem escolha real — assume riscos que antes eram socializados. Perde acesso ao seguro-desemprego, à estabilidade em casos de acidente, à aposentadoria digna. Vive à margem da rede de proteção social. Ainda que possa emitir nota fiscal e escolher seu horário, na prática, ele responde a ordens, cumpre metas, trabalha com exclusividade — como qualquer empregado.
Esse processo se dá, muitas vezes, sob o argumento da “eficiência”, da “flexibilização” ou da “modernização” das relações trabalhistas. Mas o resultado concreto é a transferência do ônus social e econômico do empregador para o trabalhador individual, que, sozinho, se vê diante da informalidade institucionalizada.
E o mais preocupante: essa mudança silenciosa ocorre sem diálogo real com a classe trabalhadora. Não se trata apenas de um novo modelo de contratação, mas de uma desconstrução do pacto social que sustenta o Direito do Trabalho e a Previdência Social.
Frente a isso, a luta dos trabalhadores se reinventa. Movimentos sindicais, associações de juristas e frentes parlamentares buscam reacender o debate público. Não se trata de rejeitar toda forma de autonomia profissional, mas de assegurar que o progresso não venha às custas da dignidade humana — princípio basilar do Estado brasileiro.
Reconhecer os limites da pejotização é, portanto, reconhecer que trabalhadores não são apenas prestadores de serviço — são sujeitos de direitos. E que qualquer avanço econômico sustentável precisa estar atrelado à justiça social.
O julgamento do STF pode representar um marco importante para delimitar os limites da pejotização legítima e coibir o uso abusivo dessa prática. Trata-se de uma discussão que vai além do direito trabalhista: é uma questão de justiça social e de responsabilidade com o futuro da previdência pública no Brasil.
Por que isso importa para você?
Mesmo que você não seja PJ, nem pretenda ser, o tema diz respeito a todos nós. Afinal, a previdência é um pacto coletivo: cada um contribui hoje para garantir que ninguém fique desamparado amanhã. Se esse pacto for fragilizado, todo o sistema perde — inclusive você.
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